O sorriso que ninguém devolve

 Hoje precisei ir a uma consulta. Nada demais — só mais uma daquelas peregrinações onde o cansaço emocional chega antes da gente. Assim que cheguei, a urgência bateu: banheiro. Sempre aquela aventura antropológica de descobrir se o espaço é individual, coletivo, misto, interditado ou se vai me surpreender com algo pior que a própria consulta.

Bati na porta. Abri. E lá estava uma senhora, saindo.
Ela me olhou.
Eu a olhei.
E, por reflexo — talvez por teimosia — eu sorri.

Sim, eu sorrio.
Ainda tenho essa mania.
Essa falha de fábrica, talvez.
Esse defeito humano que insiste em acreditar que gentileza ainda conversa com alguém.

Mas a senhora…
Ah, a senhora me devolveu um olhar.
Um olhar vazio, quase administrativo: “não tenho tempo para emoções, querida”.
Nem um canto de boca levantado, nem um micro gesto, nada. Só aquele silêncio urbano que diz “não me envolva, eu só existo”.

E eu ali, segurando meu sorriso como quem segura uma mala que ninguém ajudou a carregar.

Às vezes me pergunto se eu que estou no mundo errado.
Se sorrir virou tipo usar senha antiga: inválido, desatualizado, incompatível com o sistema.
Mas a verdade é simples — e ácida:

O problema não é sorrir. O problema é quando as pessoas desaprendem a devolver.
Não carinho, não afeição, não intimidade — só educação.

O mundo anda tão ocupado, tão corrido, tão cheio de tela e tão vazio de alma que um sorriso virou quase uma invasão de privacidade. As pessoas se assustam. Se retraem. Se fingem de paisagem. Como se ser gentil tivesse virado ameaça.

Mas quer saber?
Eu continuo sorrindo.
Por teimosia mesmo.
Porque não vou deixar o olhar vazio dos outros decretar o fim do que eu ainda acredito.

E se um dia alguém devolver o sorriso, ótimo.
Se não devolver… bem-vinda ao clube dos estranhos normais.

Atenciosamente,
A Observadora Ácida

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